quinta-feira, setembro 24, 2009

Vitória Cassiopeia - Nunca É Suficiente

Horas da tarde já são três, do dia vão quinze. Começou com nevoeiro cerrado a serrar-me os ossos, a queimar-me a pele. Continuou a aclarar-se - laranjas no céu. Está frio nestes dias. Prefiro sapatos rasos, que me mantém os pés frios mas sem a dor dos pés frios forçados a acanharem-se dentro de sapatos altos. Peso demais para ter pés frios em sapatos altos. Não tem acontecido quase nada nos dias frios, que começam com nevoeiro cerrado. Acordo, adormeço, acordo e ergo-me meio debruçada para a frente, ao lado da cama. Obrigo-me a fazer o que toda a gente faz. Obrigo-me a fazer o que me obrigam a fazer. Não acontece quase nada, pelo menos quase nada que seja alguma coisa que me fique na memória. Na memória da alegria. Na lembrança do contentamento. Está frio, nestes dias. As pessoas caminham na rua, tentam disfarçar a tristeza com sorrisos mal esboçados. Alguns “bom dia” desviam a melancolia que, logo à frente, encontra a rotunda com saida obrigatória para o mesmo caminho. Volta a melancolia. Nenhum disfarce é suficiente. Nada é suficiente. Eu não sou suficiente. O mundo não é suficiente. Não acontece nada. O que acontecer, não é suficiente. Falta-me o sabor de um beijo, o abraço daqueles que não quero abraçar. Nunca quis abraçar. Afasto-me dos corpos, rejeito o amor. O amor nunca é suficiente. Assumo a preferência pelo sofrimento a sós. Nada mudaria com um sofrimento em dose dupla porque o amor nunca é suficiente. Mas sinto vontade e sinto incapacidade. A mão a percorrer-me os milímetros, os dedos distânciados com macios movimentos, a palma sempre acente. O pescoço cercado pelos braços como o mar cerca os barcos. Sustem os barcos, os braços rebuscados trazem-me a saudade do oceano que nunca tive. Mantenho as imagens do que vejo na televisão e assisto numa rua qualquer, em primeirão mão. Espectadora do carinho alheio, é nestes dias que me odeio: os dias em que quase nada acontece. Nunca é suficiente.

Alan Marques - Carta Perdida

Encontrei uma carta perdida na rua. Vinha escrito um nome - Vitória - como destinatário. O meu caralho continua o mesmo, ainda não mudei de sexo. Quer dizer, não precisava de um caralho diferente para pertencer ao vasto grupo feminino, muito menos da ausência dele. Ausência, ausência aparece em todos os assuntos, até mesmo quando se fala de caralhos. É hábito lembar-me que a ausência existe, não fosse eu abastardo-mor da vida. É hábito lembrar-me que a ausência é a minha cara metade: todos os dias lhe grito, todos os dias a desejo, todos os dias a tenho. Encontrei uma carta perdida na rua, ausentou-se do destino e o destino ausentou-se de mim. Vitória? Parece-me a ausência em pessoa, não a conheço e não vou tentar conhecer neste instante – deve estar ausente. Talvez mais tarde me deixe possuir pela curiosidade e tenha a maldade de romper a cola que encerra este envelope. Vou violar o envelope, aniquilar-lhe a confidencialidade e tornar-me íntimo da ausência de Vitória. Mais tarde, quando me chegar a revolta de não ter cartas perdidas dirigidas a mim, de não ser ausência para álguem, de não poder rasgar com raiva qualquer folha de papel escrita por outras mãos, vou violar até à vergonha este envelope. Criar a presença da ausência, tê-la comigo e a meu lado noite fora. Apertá-la com os meus braços até que as minhas mãos se encontrem com os meus ombros, sufocar-me num sobejo e desnudar o corpo ausente presente. Mais logo, talvez mais tarde. Agora, mais vinte passos e entro no hospital onde trabalho – onde resíduo, vá – com a carta por violar no bolso. Espero por ti à hora do crime. Sai.

quinta-feira, setembro 17, 2009

Não

o tempo passa a correr, tão a correr que
este instante passou por mim e eu nem o vi

Hugo Sousa

segunda-feira, janeiro 19, 2009

Outros Anos

sei das verdades escondidas
que contam os dias no tempo
e os miseráveis fracassos
de cada um de vós

o nascimento deu-se
no nascimento de muita gente
mas o nascimento de que falo
devia ter sido muito atrás
ou muito à frente

hoje não me entendo
com tamanha leviandade
só não sou deste tempo,
que não apela à verdade

aquele foi o nosso último olhar,
aquele foi o nosso último tocar


19 Janeiro 2009
Hugo Sousa

terça-feira, maio 27, 2008

Os Sítios Por Onde Passámos

Os sítios por onde passámos continuarão a ser, tão somente, os sítios
[por onde passámos.
Enquanto um de nós for vivo, os nomes não importam, os monumentos não importam, os jardins não importam. Existiam mesmo sem nós, no entanto, não teriam a beleza harmoniosa com que os vimos, com que os pisámos, com que os vivemos. Os sítios
[por onde passámos,
existem assim como os conhecemos por nos conhecermos, porque juntos e
[juntos estivémos,
porque vivos estamos. Porque estamos. Onde estamos? Onde quer que estejemos, estamos nos sítios onde estivémos. Enquanto um de nós não morrer, os sítios
[por onde passámos
continuarão a ser apenas os sítios por onde passámos: sem nome, sem Lisboa:
[sem sítio algum.


27 de Maio 2008
Hugo Sousa

terça-feira, maio 13, 2008

De Que É Feito Portugal?

o caminho de um passado
faz da vontade acreditar
sem perceber que o passado
não nos leva a nenhum lugar

oh Portugal inconsciente
de que é feito tua bravura?
saiu num ápice e voltou para o ventre
da espera nas ruas da amargura

escreveram sobre o Quinto Império,
Fernando Pessoa - o homem mistério -
tentou ver o que ninguém via;
ver que podiamos sonhar em alcançar
os objectivos entretanto esquecidos
e não sermos uma mentira.

dele sobram as memórias
em plenas marcas na história
e ainda podemos ler.
nós, pois, vivemos na sombra
de uma história passada na glória
que teima em não viver.

a Mensagem que nos deixou
d'Os Lusíadas quase levantou
uma prespectiva cheia de fé.
mas o Império nunca foi o Quinto
e D. Sebastião nunca chegou
em nenhuma manhã de nevoeiro.

nevoeiro é o que somos
na confusão do que queremos ser
a incerteza sem solução.
e que tal soltar a raiva
a velha glória esquecer e
uma nova erguer:
outro sentido para a nação.


13 de Maio 2008
Hugo Sousa

sexta-feira, março 14, 2008

Sem Nome

chega a parecer que a mentira vive em qualquer verdade. é mentira?

quinta-feira, março 06, 2008

Uma Certa Frieza

doa a quem doer aquilo que a mim não dói
se com frieza actuei, é coisa sem controlo
tijolo a tijolo fui construindo o muro
que divide a simpatia do resto do mundo.

tijolo a tijolo é como quem diz;
sapatadas monstruosas que nada servem à pele
antes ao coração que me compõe o corpo
um parecer simpático próximo do morto.


06 de Março 2008
Hugo Sousa

quinta-feira, janeiro 31, 2008

Dói-lhe Os Dentes II

Se anteontem o dia me parecia mais novo, ontem notava-lhe as rugas e doia-me os dentes, hoje vejo-lhe o cadáver e dói-me os dentes. Dói-lhe os dentes - dizem, outra vez, os mais atentos -, passa o tempo com a mão no lado direito da cara e encolhe os olhos como se a dor neles fosse. Hão-de vir dores piores - dizem os atentos mais velhos -, como se esta dor não fosse suficientemente dolorosa para ser levada a sério.

O cadáver transformou-se em pó, a poeira que o vento transporta para outros lugares. Ontem doia-lhe os dentes e, hoje, continua a mais chata das dores. E quando passar? Quem vai alimentar a dor?, perguntou um dos atentos com meia-idade. A dor alimentará a dor, e a dor alimentada pela dor alimentará a vida. Depois vem o amor e mais uma mão cheia de velhices, respondeu o atento mais velho antes de morrer.

Por enquanto só me dói os dentes. Da cidade sobrou o pó, do atento mais velho sobrou o cadáver e de mim vai sobrando dores de dentes. Ninguém quer tirar-me um pouco desta dor?

31 (a meio, como se fosse outro dia) de Janeiro 2008
Hugo Sousa

Dói-lhe Os Dentes

Se ontem as ruas eram mais novas, hoje noto-lhes as rugas, os olhos desapontados, as peles sujas e, bem no centro da cidade, o coração sem batimentos cardiacos. Dói-lhe os dentes - dizem as bocas dos mais atentos -, entrou na noite com um leve sabor a desalento e caminhou nela com uma dor crescente. Acordou ainda não era de madrugada e viu-se sozinho no entoar dos passos, sem gritos desalmados, nos bancos vazios, em todo o lado. Dói-lhe os dentes - dizem as bocas dos mais atentos - sem a idade que corre não os teria mas, se a idade correr depressa demais, também fica sem eles. E depois? Quem vai alimentar a dor?, perguntou a boca de um dos atentos mais novos. O amor encarregar-se-á disso, respondeu com a boca o coração de um dos atentos mais velhos. Por enquanto, dói-lhe só os dentes, dizem as bocas dos atentos.


31 de Janeiro 2008
Hugo Sousa

sexta-feira, janeiro 11, 2008

Minha Mulher Morta (A Tendência Dos Três M's)

rabiscam-se projectos de vida
riscam-se nomes pela morte
ora vivem como desaparecem
os dias de alguma sorte

contam-se anos, alguns contam dias
aqui não existe hora marcada
como os filmes no cinema
quando chega é sempre inesperada e
deixa os vivos num bom dilema

o que tivemos para contar
afinal não foi muito, foi mesmo nada
morreu também com a mulher estendida
que pela morte foi arrastada

tornam-se inúteis as memórias fotografadas
o telefone toca e do outro lado não falas
se chamo o teu nome e tu não ouves
se te peço amor e não respondes

a qualquer hora pode chegar
que fosse esta a hora eu não esperava
agora estendida pela morte arrastada
procuro-me no teu eterno olhar
fechado

minha mulher morta:
mulher, morte a minha
minha morte, mulher:
Morte, mulher minha


11 de Janeiro 2008
Hugo Sousa

Somos Dois

não consigo conter as lágrimas
dizes-me tu por palavras,
eu não vejo esse choro compulsivo
no cair do mundo, quando estou contigo.

como um Fado cantado por mulheres,
choras sempre onde quiseres
só não choras quando estás comigo.

raramente somos nós
neste tremor que nos sustem
repetidamente somos dois
na calmia que se espera depois.

deixa-me agarrar e entrar em ti
para que deixemos esta separação
dói-me muito viver assim
teres-me só às vezes, no coração.


11 de Janeiro 2008
Hugo Sousa

Nossa Própria Agressão

incomoda-me estes dias infelizmente normais
acordar de noite e respirar o cortante ar frio das manhãs
mergulhar no fumo adormecido do mundo
pelo roncar do meu carro avisado

somos o centro da insignificante tristeza do mundo
ignorando a guerra e a fome de outros sítios
- pondo isso de lado - somos a vivida depressão
os culpados da nossa própria agressão

já no trânsito caótico seguro a testa com a mão
os dias correm sempre na mesma direcção
o elevador daquele edíficio espera-me ansioso
como se eu fosse alimento essêncial
ele já sem forças e eu sem humor:
tumor benigno, tumor

somos o centro da insignificante tristeza do mundo
os culpados desde há muitas gerações
vivemos numa forte e pesada depressão
a nossa própria agressão

dentro do escritório entrego-me à monotonia
sentado na cadeira como um prisioneiro de Alcatraz
soltam-se pensamentos sobre a vida
"não sou dono de mim até à hora de saida".


11 de Janeiro 2008
Hugo Sousa

Atrás Da Porta Encostada

chega o momento aos bocados
segundo a segundo
atrás da porta encostada.
sinto-lhe o cheiro com o vento,
a corrente de ar pela janela aberta provocada
o momento de nada, o vazio
atrás da porta encostada.
a solidão acompanha-o, espera
o toque da campainha que não existe e
acompanha todos os momentos que
espreitam atrás da porta encostada.
na casa sempre vazia:
a lareira por acender
a loiça por lavar
a cama por fazer
a planta morta por regar.
na casa sempre vazia
só a solidão pode morar,
a solidão e eu
com o momento vazio, atrás da porta encostada,
a espreitar.


11 de Janeiro 2008
Hugo Sousa

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Tentativas

e se eu te disser que hoje não me amas?
que sou apenas o alvo de ofensas
onde o amor não é mais que palavras.
as tentativas onde não consegues
ultrapassar o seu significado: tentativas.
sou aquele que te ajuda a iludir o amor
que não sentes.
não sou mais que uma tentativa.

10 de Janeiro 2007
Hugo Sousa

quarta-feira, janeiro 09, 2008

Tu Pediste-me

tu pediste-me e eu dei-te
a loucura formalizada nas palavras
com o anseio de construir o castelo
que nos vai servir de casa.
assentemos nossos corações nas pedras
que sustêm os murais enlodados
pela vida adormecida enquanto noite:
eu e tu naquele quarto.
dou-te as palavras que me pediste
sem usares a tua requintada voz
escreveste no diário de um pensamento
essa tua vontade atroz e eu dei-te
as palavras que me pediste e
um coração entre as mãos:
o mundo só para ti


9 de Janeiro 2008
Hugo Sousa

sexta-feira, dezembro 28, 2007

Viagem Sem Fim

entra nesta viagem sem fim
um barco de palavras foi o que consegui
para nos levar à verdade do mundo
temos pela frente um mar imenso
onde vos apresento o que penso
no meu coração moribundo

por outras terras vamos passar
com a vontade de navegar
entrelaçada nos sentimentos
por ilhas e continentes,
as palavras mordidas pelos dentes
espalhadas p'ra lá do cabo dos tormentos

com culturas que nos são estranhas
espremê-las até às entranhas e
enriquecer a nossa sabedoria
as comidas e os cotumes legais
pelas nossas peles morenas jamais
cairão em desuso e serão esquecidas

entra nesta viagem sem fim
um barco de poesia foi o que consegui
para nos levar à verdade do mundo
as palavras nunca antes ditas,
dúvidas na existência de belas rimas
atordoadas por um vazio profundo

entra nesta viagem sem fim
um barco de palavras foi o que consegui
para todos: para mim: para ti

entra nesta viagem sem fim


28 de Dezembro 2007
Hugo Sousa

sexta-feira, dezembro 21, 2007

Cães Da Fome No Choro

sentinela noite que nos prevê
a chorar desgostos sobre a cama
com a pele nua, coberta de frio
um casal de cães vadios anuncia
a chegada de um cheiro desconhecido
seguem-lhe o rasto com dentes ansiosos
por carne com aroma nauseabundo
só ladram, não mordem mas
sinto-lhes a vontade no meu choro
a ganância dos dentes vaidosos
do estômago ausente pela carne
que não encontram nos escombros
da escura noite


21 de Dezembro 2007
Hugo Sousa

Mal Do Bicho Que Não Sai

mal do bicho que não sai
do esconderijo calcado
pelos pés de quem vai
através do mundo desolado

as paredes daqueles encostos
com a cabeça descaída
os braços ligeiramente mortos
enquanto se pensa na vida

mal do bicho que não sai
do esconderijo coberto
pelo andar de quem pisa
terras quentes deste deserto

estão palavras magoadas
nas conversas que nos consomem
as ofensas abusadas
da mulher para o homem

mal do bicho que não sai
da toca funda escurecida
pela noite que nos chega
com tuas ofensas adormecia


21 de Dezembro 2007
Hugo Sousa

Existo, Não Existo

quando é que serei o melhor sem ser, momentos depois, o pior? as palavras magoaram há uns dias. voltaram a magoar nestes dias. a memória encurta, sem vislumbramento. no esquecimento vive agora aquele domingo. voltei a ser o pior momentos depois de ser o melhor. até onde vão chegar os teus caprichos? o baloiço que sou, enferruja a cada momento. cima-atrás, cima-frente, cima-atrás, cima-frente, não mais. cansas-me a auto-confiança. existo, não existo. o pêndulo substitui o baloiço. deixo de ser o melhor ou o pior, passo a existir e a não existir. tanto marcam as recordações como incendeiam as ofensas. és feliz mas não és feliz. quando me dizes ser o melhor és feliz, quando não és feliz dizes-me ser o pior. o baloiço parou. agora, o pêndulo é movimentado pelo vento. pelo vento das tuas palavras. existo, não existo.


21 de Dezembro 2007
Hugo Sousa