quinta-feira, março 22, 2007

Os Reflexos Escuros São As Sombras Do Silêncio

os reflexos escuros são as sombras do silêncio.

não estás aqui nem sei se estás em algum lado
para além de estares em mim.

panos de cozinha é tudo aquilo que consigo ser
na gaveta aberta donde me retiras.
sirvo para limpares sujidade,
sou a protecção contra a queimadura
e no fim espero a máquina de lavar como destino.
lavado e refrescado, posto numa liberdade limitada
ao ficar pendurado num estandal,
a sentir um ligeiro calor que me seca.
depois deste ritual caseiro, apanhas-me
e voltas a fechar-me numa gaveta
pronta a ser aberta e eu pronto a ser usado
outras mil vezes sem me poder rasgar.

não posso ser tão pouco,
não posso existir em tão poucos sitios.

dentro da gaveta todo o espaço é escuro.
o todo não existe.
os reflexos escuros que não existem dentro da gaveta
são as sombras do silêncio que nunca morreu.

eu devo ser mais,
devo estar em muitos mais lados.

enquanto ainda for dia vou lembrar-me
que existo na noite onde morro para me salvar.
a preguiça mergulhada no mundo
sou eu mergulhado no mundo.
a incerteza esboçada no céu,
sou eu pintado nas nuvens que nos cobrem.
o medo de nada me pertencer
é o que me pertence sem medo de alguma coisa.

diz-me quão grande foi o gozo que te dei,
diz-me as piores palavras do mal
e fala-me sobre o gozo que sentiste
amarrado por correntes ao gozo que te dei.

o som do vento contra as folhas ainda não parou,
a janela que espreita a tua chegada ainda não partiu.
estou a sair para fora de mim,
"estou aqui" gritaste tu,
então espera lá fora,
no outro lado da janela
que nos separa e espreita a tua chegada.

pouco por descobrir
e o tempo nada descobre.
no rio, a vida espera
o meu desabafo tempestuoso
acerca de outra quimera.

espera-nos e alimenta-nos
como se nos salvasses desta guerra.
entre as margens do velho rio
as crianças querem ser o que eu era.


HUGO SOUSA
22 Março 2007

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