quinta-feira, setembro 24, 2009

Alan Marques - Carta Perdida

Encontrei uma carta perdida na rua. Vinha escrito um nome - Vitória - como destinatário. O meu caralho continua o mesmo, ainda não mudei de sexo. Quer dizer, não precisava de um caralho diferente para pertencer ao vasto grupo feminino, muito menos da ausência dele. Ausência, ausência aparece em todos os assuntos, até mesmo quando se fala de caralhos. É hábito lembar-me que a ausência existe, não fosse eu abastardo-mor da vida. É hábito lembrar-me que a ausência é a minha cara metade: todos os dias lhe grito, todos os dias a desejo, todos os dias a tenho. Encontrei uma carta perdida na rua, ausentou-se do destino e o destino ausentou-se de mim. Vitória? Parece-me a ausência em pessoa, não a conheço e não vou tentar conhecer neste instante – deve estar ausente. Talvez mais tarde me deixe possuir pela curiosidade e tenha a maldade de romper a cola que encerra este envelope. Vou violar o envelope, aniquilar-lhe a confidencialidade e tornar-me íntimo da ausência de Vitória. Mais tarde, quando me chegar a revolta de não ter cartas perdidas dirigidas a mim, de não ser ausência para álguem, de não poder rasgar com raiva qualquer folha de papel escrita por outras mãos, vou violar até à vergonha este envelope. Criar a presença da ausência, tê-la comigo e a meu lado noite fora. Apertá-la com os meus braços até que as minhas mãos se encontrem com os meus ombros, sufocar-me num sobejo e desnudar o corpo ausente presente. Mais logo, talvez mais tarde. Agora, mais vinte passos e entro no hospital onde trabalho – onde resíduo, vá – com a carta por violar no bolso. Espero por ti à hora do crime. Sai.

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